A seguir, você lerá o relato de Enilda Rodrigues da Silva - cearense, pobre e trabalhadora, conhecida por comprar caixão para seus filhos vivos, apesar disso, ela não é a única a viver nessa situação. Vale a pena acompanhar!
“Mataram meu filho em 11 de dezembro de
2005. Ele tinha 20 anos. Ao meio-dia, ele tinha feito um assalto para
comprar droga. O tiro pegou na camisa dele, deixou um buraco. À noite,
saiu para cheirar loló no trilho do trem. A polícia viu meu filho e
atirou. Uma das balas pegou no pescoço. Eu estava em casa, senti na
hora. Disse para o meu outro filho: ‘Ele morreu’. Senti uma coisa da
cabeça aos pés. Uma dor tão grande que não sei explicar. Uma dor de
doer. É uma dor no peito que vai fechando. A gente quer falar e não fala
mais. Desmaiei na calçada e não vi mais nada.
Quando esse menino chegou, um dia, com
um tiro no peito, sangrando em cima da bicicleta, comecei a pagar o
caixão dele. Vejo muita mãe aqui onde moro tendo de pedir esmola pra
comprar o caixão. Eu não queria isso pro meu menino. Quando ele foi
assassinado, fazia quase cinco anos que eu pagava. Mas estava com duas
prestações atrasadas. O pai dele tinha ganhado o décimo-terceiro na
padaria, porque era perto do Natal. A gente estava guardando para
aumentar a casa, que não cabe todo mundo na hora de dormir. Mas quando
meu filho foi morto, peguei esse dinheirinho e mandei pagar o carnê
atrasado logo cedo.
Agora, estou pagando o caixão do meu
outro filho, de 19 anos. Ele está no tráfico. Ele diz: ‘Mãe, eu não vou
ser que nem o meu irmão, que morreu de graça’. Mas sei que ele vai
morrer. A pedra [crack] está matando os meninos novos tudinho. É
terrível comprar caixão para filho vivo, mas meus meninos vão morrer
honestamente.
Tive sete filhos, agora só tem quatro
vivos. Crio também uma menina que botaram na minha porta com sete dias
de vida. Dois morreram de doença quando eram pequenos e esse morreu de
morte matada. Desses que morreram de doença, eu não sinto falta. Acho
que porque eram pequenos. O que morreu de morte matada dói o dia todo.
Esse meu menino que morreu foi bom até
os 12 anos. Ele era vendedor de coco. Era pequeno e tinha mão com calo
de tanto trabalhar. Vendia coco numa carrocinha que o pai deu pra ele.
De um dia pro outro, virou a cabeça. Começou a usar toda a droga que há
no mundo. A gente segura até os 11, 12 anos. Bota pra dentro de casa no
fim da tarde e só abre no dia seguinte. Mas quando crescem, não segura
mais. Eles vão pra rua e o que encontram? Não tem nada, lazer, trabalho,
coisa nenhuma. Tem o tráfico.
Na primeira vez que ele chegou com os
olhos apertados, cheirei a boca do meu menino. Senti na hora o bafo da
maconha misturado com loló. O pai bateu nele. Na segunda, eu mesma bati.
Não adiantou nada. Nem conversa, nem conselho. Ele não ouvia a gente.
Então soube que o fim dele era a morte. Nunca aceitei nada dele aqui em
casa. Nenhuma arrumação. Aceitava quando era dinheiro suado, que ganhava
vendendo coco. Depois, não. Porque se aceitasse, ele ia querer trazer
toda vida. Um dia encontrei a droga aqui e dei descarga nela. Sempre
abri a porta para a polícia, nunca acobertei. Mas não agüentava mais ver
a polícia batendo nele na minha frente, ele ficava com a cara toda
arrebentada. Meu filho tinha até hérnia nos testículos de tanto levar
chute. Esse menino tinha 20 anos e passou mais tempo preso do que solto.
A polícia me trata mal. Diz que sou mãe
de vagabundo. Mas eles não sabem como a vida é na verdade. Eu e meu
marido somos casados há 28 anos. Ele acorda às 3h da manhã para fazer
pão na padaria. Ganha R$ 70, às vezes R$ 80 num mês. Quando meus filhos
eram pequenos, eles diziam que queriam ser padeiro como o pai. Mas
depois que cresceram, não quiseram mais saber disso, não. Eles riem da
profissão de padeiro. Eu lavo duas trouxas de roupa por semana, cada uma
com mais de 70 peças. Lavo, engomo, passo. Tudo na mão. Me pagam R$ 25
reais por trouxa. Queria ter mais para lavar, mas ainda não consegui
mais freguesas.
A gente trabalha pra dar de comer aos
nossos filhos, nunca faltou comida a eles. Mas eles querem roupa de
marca. Eu tento comprar, uma vez pra cada um. Tem uma mulher que vende
aqui na porta e a gente paga por semana. Quando acabo de pagar a roupa
de um, começo a pagar a do outro, até chegar no último e começar tudo de
novo.
Toda a minha família dorme num quarto
só, mesmo o menino que já tem mulher. Somos oito num quarto só, sem
janelas. Depois tem mais uma pecinha e a cozinha. Por isso eu queria
aumentar a casa. Porque a gente só cabe um por cima do outro. Bota uma
rede em cima da outra. E um ventilador, pra agüentar um pouco o calor.
Todo ano aqui tem enchente. Alaga tudo, fica a marca da água no meio da
parede. Eu pego os meninos e a gente vai dormir lá fora até a água
baixar. Botamos um colchão lá onde eu lavo roupa. Quando a água baixa, a
gente volta. Ficamos todos doentes, porque fica cheio de ratos. O
pouquinho de móveis que a gente tem apodrece.
Queria salvar os meus filhos que ainda
não morreram, mas não sei como. Digo que o irmão morto é o espelho
deles, que nessa vida de tráfico vão morrer de uma hora pra outra. Digo
também que quem entrar para o crime eu entrego, porque não protejo
sem-vergonhice. Mas eles não escutam. Saem de casa e dizem que voltam
quando eu ficar mais calma. Não bebo, não fumo. Meu vício só é novela.
Vejo todas. Boto as crianças pra dentro e vejo da primeira à última
novela, em todos os canais. Aí durmo. De noite eu acordo. Ouço o meu
filho me chamando na porta. ‘Mãeeee’, ele diz. Eu me levanto, vou até a
porta, abro e ele não está lá. Meu marido fica bravo, diz que um dia vão
me matar quando eu abrir a porta. Mas ouço meu filho me chamando, e não
consigo não abrir. Só que ele nunca está lá. Não tem ninguém lá. Então
fico chorando atrás da porta”.
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